SpaceX é a escolhida para pousar astronautas na lua: O que significa essa escolha para o mercado espacial, para o programa Artemis e para a SpaceX?
Rui Botelho*
26/04/2021
Dentro do guarda-chuva do programa Artemis, a NASA anunciou no último dia 16/04/2021 que a Starship da SpaceX foi o projeto escolhido dentro do programa nextSTEP como o Sistema de Pouso Humano (Human Landing System – HLS) levará os astronautas americanos, dentre eles a primeira mulher, para a Lua, ainda nesta década (veja aqui).
Figura 1. Imagem ilustrativa do projeto do módulo de pouso humano da SpaceX Starship que transportará os primeiros astronautas da NASA para a superfície da Lua sob o programa Artemis, adaptada.
Créditos: NASA apud SpaceX
Essa vitória da SpaceX não chega a ser surpreendente, mas provocou algumas manifestações de espanto dado o fato do projeto da empresa ter sido selecionado em último lugar (de 3) na etapa anterior.
Por mais que hoje tenhamos muitas informações e demonstrações que sugerem a viabilidade técnica do projeto da Starship (vide a série de testes dos protótipos Mk e SN), a Starship apresentada para o HLS é diferente das apresentadas até então, além de ser completamente diferente de tudo que foi apresentado pelas demais concorrentes.
Então, sendo algo tão diferente do projeto / protótipos base da Starship, dentre as diversas perguntas que advém desse resultado, temos:
1) O que fez com que a Starship/SpaceX ganhasse essa disputa?
2) O que significa esse resultado para a SpaceX, para a NASA e para o Programa Artemis?
3) Quais fatores de comprometimento estão vinculados a essa escolha e que não foram questionados até então?
Claramente não há como esgotar esse tema, nem temos a pretensão de fazê-lo no presente artigo, mas, para entender o cenário atual e futuro, é importante conhecer o processo de seleção do HLS.
A seleção do HLS
Em maio de 2019, a NASA anunciou o programa NextSTEP como parte do Programa Artemis. Nesse primeiro momento, foram selecionadas 11 empresas (veja aqui) para apresentarem projetos de protótipos do HLS, que fará o transporte dos astronautas da nave orbital à superfície da Lua (Gateway), e vice-versa.
Essa seleção foi parte das parcerias público-privadas para desenvolver tecnologias necessárias para os planos de exploração da NASA e as empresas que receberam esses prêmios tiveram que investir com recursos próprios de contrapartida, além do financiamento combinado da NASA no valor de USD 45,5 milhões (~USD 4 milhões por empresa).
As 11 empresas selecionadas representaram uma boa amostra da indústria espacial comercial americana, desde empresas aeroespaciais estabelecidas à startups emergentes:
- Aerojet Rocketdyne;
- Blue Origin;
- Boeing;
- Dynetics;
- Lockheed Martin;
- Masten Space Systems;
- Maxar Technologies / SSL;
- Northrop Grumman Innovation Systems;
- Orbit Beyond;
- Sierra Nevada Corporation; e
- SpaceX.
Das 11 selecionadas originalmente, no final de abril de 2020 foi anunciado que somente 3 projetos / empresas seriam finalistas, dentre as quais a Blue Origin (Blue Moon), Dynetics e SpaceX, exatamente nessa ordem (veja aqui e aqui).
Figura 2. Imagem da concepção artística do Blue Moon da Blue Origin.
Fonte: Blue Origin / Blue Moon Homepage.
Figura 3. Imagem da concepção artística do Lunar da Dynetics.
Fonte: Dynetcs / Lunar Site.
Portanto, dado o porte dos competidores e da experiência e transparência da NASA em processos de seleção dessa natureza, muito mais que uma surpresa, a seleção da proposta da SpaceX é uma prova do quão viável (técnica e economicamente) o conceito da Starship / Super-Heavy começa a se solidificar como um modal de transporte espacial para o espaço profundo de referência para o setor nos próximos anos, assim como o Falcon 9 e o Falcon Heavy (em menor extensão) se tornaram para o transporte de cargas para órbitas terrestres.
O que fez com que a Starship/SpaceX ganhasse essa disputa?
Os critérios e processos utilizados pela NASA para o processo de seleção do HLS estão descritos no documento Source Selection Statement – Appendix H, de 16 de abril de 2021 (veja aqui).
No entanto, outros fatores externos contribuíram para o resultado na disputa do programa, tais como o sucesso da SpaceX em diversas disputas em outros programas da NASA e a própria condição de principal (primeiro e quase único) operador mundial de sistemas de lançamento recuperáveis, por exemplo.
Assim podemos dizer que existem dois tipos de fatores que culminaram com o resultado da seleção da Starship / Spacex no HLS: Os fatores objetivos intrínsecos ao HLS e os fatores externos / de mercado que diferenciam a SpaceX e seus projetos dos demais concorrentes.
- Os critérios de seleção do HLS
Muito claramente o texto do Source Selection Statement – Appendix H, escrito em primeira pessoa do singular e assinado por Kathryn L. Lueders (Source Selection Authority), apresenta de forma clara, sucinta e objetiva os critérios e processos objetivos do programa de seleção que levaram ao resultado da seleção da Starship / SpaceX, tendo como os principais fatores de decisão: Factor 1 – Technical Approach (Abordagem Técnica); Factor 2 – Total Evaluated Price (Preço Total Avaliado); e Factor 3 – Management Approach (Abordagem de Gestão).
Os fatores 1 e 3 são subdivididos em sete “Áreas de Foco” (Focus Area) cada um, quais sejam:
Factor 1 – Technical Approach (Abordagem Técnica)
– Technical Design Concept (Conceito de Design Técnico);
– Development, Schedule, and Risk (Desenvolvimento, cronograma e risco);
– Verification, Validation, and Certification (Verificação, validação e certificação);
– Insight (Entendimento);
– Launch and Mission Operations (Operações de lançamento e da missão);
– Sustainability (Sustentabilidade); e
– Approach to Early System Demonstrations (Abordagem para as primeiras demonstrações do sistema).
Factor 3 – Technical Approach (Abordagem Técnica)
– Organization and Management (Organização e Gestão);
– Schedule Management (Gestão de Cronograma);
– Risk Reduction (Redução de risco);
– Commercial Approach (Abordagem Comercial);
– Base Period Performance (Desempenho do período base);
– Small Business Subcontracting Plan (Plano de subcontratação de pequenas empresas); e
– Data Rights (Direitos aos Dados).
A tabela 1 apresenta a categorização e organização dos fatores e das respectivas áreas:
Tabela 1. Fatores de avaliação e áreas de enfoque.
Fonte: NASA.
A avaliação de cada Área de Foco dos fatores 1 e 3 se baseou em na identificação de evidências quanto a consistência de diversos itens das propostas (quanto aos seus pontos fortes e/ou suas fraquezas), muito similar aos produtos de uma matriz SWOT (strengths, weaknesses, opportunities and threats <=> forças, fraquezas, oportunidades e ameaças), com a seguinte escala:
– Significant Strength (Força Significativa) – Um aspecto da proposta que aumenta muito o potencial de desempenho do contrato bem-sucedido e / ou que excede consideravelmente os requisitos de desempenho ou capacidade especificados de uma forma que será vantajosa para o Governo durante a execução do contrato;
– Strength (Força) – Um aspecto da proposta que terá algum impacto positivo no desempenho bem-sucedido do contrato e / ou que exceda os requisitos de desempenho ou capacidade especificados de uma forma que será vantajosa para o Governo durante a execução do contrato;
– Weakness (Fraqueza) – Uma falha na proposta que aumenta o risco de execução malsucedida do contrato;
– Significant Weakness (Fraqueza significativa) – uma falha na proposta que aumenta consideravelmente o risco de execução malsucedida do contrato; e
– Deficiency (Deficiência) – Uma falha material de uma proposta para atender a um requisito do governo ou uma combinação de pontos fracos significativos em uma proposta que aumenta o risco de execução malsucedida do contrato a um nível inaceitável.
A tabela 2 apresenta a organização e definições originais de cada item da escala de avaliação:
Tabela 2. Escala de avaliação dos fatores de avaliação e áreas de enfoque.
Fonte: NASA.
A classificação de cada uma das áreas de enfoque e dos respetivos fatores (1 e 3) como um todo correspondem ao resultado do balanço entre forças e fraquezas identificadas dentre os diversos aspectos analisados em cada área de enfoque.
De posse do balanço entre pontos fortes e fracos da classificação dos aspectos da proposta, cada um dos fatores 1 e 3 foram adjetivados com uma classificação geral final, conforme a escala abaixo:
– Outstanding (Excelente) – Uma proposta completa e convincente de mérito excepcional que responde plenamente aos objetivos do programa. A proposta contém pontos fortes que superam em muito quaisquer pontos fracos;
– Very Good (Muito Bom) – Uma proposta competente e de alto mérito que responde plenamente aos objetivos do programa. A proposta contém pontos fortes que superam quaisquer pontos fracos;
– Acceptable (Aceitável) – Uma proposta competente de mérito moderado que representa uma resposta credível ao programa. Pontos fortes e fracos são compensados ou terão pouco ou nenhum impacto no desempenho do contrato;
– Marginal (Marginal) – Uma proposta de pouco mérito. A proposta não demonstra claramente uma abordagem adequada e compreensão dos objetivos do BAA. As fraquezas superam as forças;
– Unacceptable (Inaceitável) – Uma proposta gravemente falha que não atende aos objetivos do BAA. A proposta tem uma ou mais deficiências, ou várias deficiências significativas que demonstram uma falta de competência geral ou exigiram uma revisão principal da proposta para serem corrigidas. A proposta é inadmissível.
A tabela 3 apresenta a escala original de classificação adjetivada:
Tabela 3. Definições de classificações adjetivas
Fonte: NASA.
Como resultado desse processo de avaliação a proposta da Starship / SpaceX obteve o melhor resultado com a seguinte classificação final para os fatores 1 e 2, conforme a tabela 4:
Tabela 4. Classificações de adjetivação técnica e de gestão
Fonte: NASA.
Apesar da Starship / SpaceX empatar com a Blue Moon / Blue Origin no fator técnico, deixando a Dynetics fora do páreo, no fator gestão a SpaceX deixa das duas concorrentes empatadas com “Muito Bom” (Very Good), com um resultado “Excelete” (Outstanding).
Do ponto de vista técnico e de gestão a Starship / SpaceX se destacou positiva e negativamente conforme os aspectos apresentados resumidamente no quadro 1:
Quadro 1. Resumo dos aspectos positivos (fortes) e negativos (fracos) dos fatores 1 e 3 da proposta da SpaceX / Starship.
Fonte: O autor.
Aspectos | Fator 1 – Técnica | Fator 3 – Gestão |
Positivos
(Fortes) |
P1.1: Tempo de operação na órbita lunar = 100 dias > NASA requerimento = 90 dias;
P1.2: Capacidade de carga (kg) = 100.000 kg* > NASA Orion = 15.000 kg; P1.3: Capacidade de carga (volume) => equipamentos de formatos e volumes não convencionais; P1.4: P1.1 + P1.2 + P1.3 => aumento da capacidade de operação e pesquisa + retorno do investimento em menos tempo; P1.5: Áreas de carga pressurizada e não pressurizadas independentes; P1.6: Margem extra de propelente ascensão à órbita lunar no caso de um retorno antecipado de emergência; P1.7: Redundância de saídas de emergência; P1.8: Duas eclusas de ar (entrada / saída) redundantes, independente e recursos de suporte de vida. P1.9: Maior reserva de recurso de suporte à vida em caso de contingência; P1.10: P1.5 + P1.6 + P1.7 + P1.8 + P1.) => redução de riscos e aumentam a probabilidade de segurança da tripulação durante as várias fases da missão; P1.11: Capacidade de habitação na própria nave (sem estruturas enviadas previamente) para 4 astronautas; P1.12: Maior quantidade de missões extraveiculares (EVA); P1.13: Hardware 100% reutilizável; P1.14: Projeto com herança alta e com alto índice de intercambialidade e interoperabilidade com outros sistemas da empresa em desenvolvimento e/ou operacionais; P1.15: Potencial complementar de longo prazo para atividades tanto de exploração lunar, quanto do espaço profundo; P1.16: Campanha de testes de voo e pouso com protótipos de alta fidelidade já em andamento e com potencial de amadurecimento tecnológico rápido. |
P2.1: Abordagem de gestão extremamente completa e cuidadosa e estrutura organizacional;
P2.2: Abordagem para alavancar seu robusto banco de pessoal e conhecimento P2.3: Experiência prévia no gerenciamento de programas espaciais e lições aprendidas com essas experiências; P2.4: Atraente proposta para replicar e utilizar processos de gerenciamento, conjuntos de ferramentas e software que foram efetivamente empregados em outros programas semelhantes => garantir a rastreabilidade e rastreamento eficazes do progresso 13 no contrato HLS; P2.5: P2.1 + P2.2 + P2.3 + P2.4 => ajudarão a reduzir o risco de cronograma e permitirão uma gestão mais eficaz de seu progresso contratual. |
Negativos
(Fracos) |
N1.1: Dependência do desenvolvimento de um lançador específico;
N1.2: Necessidade de abastecimento em órbita da Terra para Injeção Translunar (TLI) com capacidade máxima; N1.3: A altura das portas de acesso dos compartimentos da tripulação e de carga a mais de 30 metros do solo => risco para a operação; N1.4: Sistemas de voo e pouso concentram os aspectos de maior risco de sua arquitetura proposta; N1.5: Operações de Lançamento e Missão com complexidade sem precedentes trazem riscos inerentes à coordenação e sincronização de atividades; N1.6: sistema de propulsão complexo altamente integrado => risco de desenvolvimento e cronograma. |
(Mínimos) |
* com reabastecimento em órbita
Em termos de preços (Factor 2 – Price), o resultado não possuiu nenhum ranqueamento ou classificação, sendo derivado da análise dos seguintes componentes: (1) Cálculo do Preço Total avaliado de cada ofertante; (2) Avaliação da razoabilidade do preço de cada ofertante; (3) Avaliação do preço balanceado de cada ofertante; e (4) Avaliação para saber se a proposta do ofertante continha adiantamentos.
Nesse sentido, a proposta da SpaceX foi considerada justa, razoável, equilibrada e sem previsão de adiantamentos. Além disso, considerando o cronograma físico-financeiro, não se identificou nenhum sinal de inexequibilidade ou de riscos subestimados quanto à fluidez de caixa, mesmo depois de uma etapa de negociação e ajuste das Contratações.
Ao final, o preço total avaliado da SpaceX de USD 2.941.394.557,00 foi o mais baixo entre os ofertantes, por uma ampla margem. O preço total avaliado da Blue Origin (não divulgado) foi significativamente maior do que isso, seguido pelo preço total avaliado da Dynetics (não divulgado), que foi significativamente maior do que o da Blue Origin.
- Os fatores externos ao HLS
Os principais fatores que contribuíram para o resultado da Starship / SpaceX podem ser divididos em: fatores conjunturais com relação ao mercado espacial, fatores internos do Programa Artemis e fatores internos da própria SpaceX.
– Fatores conjunturais do mercado espacial
Dentro do cenário dos fatores conjunturais do mercado espacial a SpaceX vem sendo a empresa de referência no setor, que vem elevando os requisitos de técnicos / tecnológicos e de diferencial competitivo / preços para patamares que a colocam quase que absoluta no segmento de atuação, transformando-a na representação mais fiel do conceito do New Space. Ainda que a SpaceX tenha amargado alguns insucessos, principalmente nos primeiros voos dos seus veículos parcialmente reutilizáveis Falcon 9 e Falcon Heavy, com o passar do tempo esses lançadores vem se provando confiáveis e operacionalmente reutilizáveis, fazendo com que alguns boosters (1os estágios) tenham sido lançados, inclusive em intervalos de tempo muito curtos, na casa das dezenas de vezes.
Isso tem feito com que tanto a credibilidade da empresa quanto seus produtos tenham alcançado padrões de desempenho e de retorno financeiro invejáveis, mesmo com preços cada vez menores, poucos vistos no ocidente, superando inclusive projetos longevos, bem estabelecidos e com custos marginais já superados há muito tempo como os foguetes Soyuz da Rússia / União Soviética.
A título de ilustração, atualmente os custos estimados médios por quilo em lançamentos no Falcon 9 e no Falcon Heavy são, respectivamente, na faixa de USD 2.700 e USD 1.400. Em veículos Proton ou Soyuz da Rússia esses valores estão na casa de USD 4.320 e USD 20.000, respectivamente.
Essa confiabilidade e o melhor custo foram peça chave para a SpaceX se sobressair em outros programas da NASA e do Departamento de Defesa (Department of Defense – DoD) dos Estados Unidos da América (EUA), tais como os de lançamento de cargas e de tripulação para a Estação Espacial Internacional (ISS), este último trazendo de volta o lançamento de astronautas americanos de solo americano, depois de quase 10 anos, sem contar os lançamentos dos satélites de defesa dos EUA e de outros países aliados, como Israel.
Se já não bastasse tudo isso, a SpaceX revolucionou a área de telecomunicações ao lançar a sua megaconstelação de satélites, a Starlink (veja aqui), com a qual pretende fornecer acesso a internet em qualquer lugar do planeta, usando os seus próprios, confiáveis e mais baratos, lançadores.
Sem competidores que cheguem a conseguir imitar (copiar) o seu diferencial tecnológico e mercadológico, a SpaceX, com alguns atrasos e percalços pontuais, conquistou uma posição diferenciada que a faz “nadar de braçada” sobre os seus antiquados concorrentes. Isso tudo se soma para que o ecossistema de negócios da empresa de Elon Musk agregue valor mutuamente e se complemente, como nunca visto anteriormente na história da exploração comercial espacial.
Em um momento em que se pretende voltar à Lua e, em seguida, ir a Marte com missões tripuladas, somente um foguete grande e potente não é o suficiente é preciso ter uma solução sustentável tecnológica e economicamente falando.
Esse foi o diferencial apresentado pela SpaceX com o Starship adaptado para o Programa Artemis.
– Fatores internos do programa Artemis
Como é de conhecimento público, a base para a concepção conceitual do Programa Artemis é baseada no modelo de conhecimentos adquiridos no Programa Apolo que levou os americanos à Lua nas décadas de 60/70, com o modelo de negócio apoiado na indústria espacial tradicional americana, totalmente Legacy Space. Exceto pela ideia de uma estação espacial orbitando a Lua (a Gateway), tanto o veículo lançador (Space Launch System – SLS) quanto a nave originalmente concebida para transportar os astronautas (dentre eles a primeira mulher a ser enviada para o nosso satélite natural), a Orion, tem uma forte inspiração na experiência americana da Apolo, o que é muito natural e compreensível.
No entanto, entre a concepção, desenvolvimento e finalização do SLS e da Orion, o mercado espacial mundial foi (re)virado pelo avesso e de ponta-cabeça com o surgimento das startups espaciais e do movimento e novo paradigma sócio-filosófico-econômico do New Space e da sua frenética motivação pela inovação e disrupção tecnológica.
Assim, enquanto o SLS e a Orion se desenvolviam sob a perspectiva tradicional, novas opções de soluções surgiram e se estabeleceram, dentre elas a SpaceX como sua maior representante, e colocaram em xeque esses sistemas / produtos que ainda nem haviam sido finalizados e já estavam muito defasados, conceitual e tecnologicamente.
Com anos de investimentos e diversos compromissos e arranjos políticos para o emprego dos recursos do desenvolvimento do SLS e da Orion, seria impossível simplesmente abandonar esses projetos, ainda que os mesmos sejam atualmente proibitivos em termos de custos.
Para exemplificar essa diferença, estima-se que o custo por lançamento do SLS (sem apropriação dos custos de desenvolvimento) seja da ordem de USD 2 bilhões para uma carga útil (payload) máxima para TLI de 43.000kg, o que resulta em USD 46.511 / kg (com 10% de reusabilidade de componentes). Já a Spaceship / Super-heavy teria um custo estimado de USD 335 milhões para um payload de 100.000 kg, o que implica em um custo de USD 3.350 / kg.
Não é atoa que mesmo estando foram do escopo do HLS, o relatório final da NASA mencione que a Starship tenha uma capacidade de carga muito superior, quando comparado com a nave Orion, isso sem contar que na solução completa da SpaceX (Starship + Super-heavy) tenha-se ~100% de reusabilidade dos sistemas, enquanto no SLS + Orion, praticamente, só a nave seja reutilizável.
Com isso resta claro que o SLS / Orion estão muito ameaçados com a seleção da Starship e com a velocidade que os projetos da nave e do booster Super-heavy vem obtendo, quando comparados com o tempo de desenvolvimento do SLS / Orion.
– Fatores internos da SpaceX
Os fatores internos à SpaceX que também impactaram diversos resultados anteriores da empresa em outros programas / processo seletivos são a sua capacidade de inovar e de desenvolvimento orientado à prototipação, que vem transformando o próprio desenvolvimento da Starship em um evento de alcance mundial em si mesmo.
Não é atoa que as transmissões dos testes, principalmente os de voos de grande altitude, com as quedas de barriga (belly flops) e as tentativas de pouso vertical da Starship vem instigando a curiosidade e aumentando a audiência dos internautas em todo mundo. A cada novo progresso ou mesmo a cada insucesso esses eventos tem mexido positivamente com a opinião popular e da comunidade especializada, que se organiza em lives com audiências que competem com as de eventos da própria NASA.
Essa nova forma de fazer o desenvolvimento tecnológico e de se comunicar (mesmo com os erros) era algo, e ainda é para alguns, impensável, pois, na concepção mais tradicional, as explosões e falhas poderiam manchar a imagem das empresas do Legacy Space. Na contramão disso tudo, a SpaceX faz uma exposição do seu modelo de desenvolvimento “em praça pública” e ao contrário do pensamento comum, a cada explosão e falha, e também com os sucessos e superações dos problemas, aumenta cada vez mais a sua “torcida” e a sua reputação de inovadora e diferenciada.
Mas essa torcida não é somente para que a Starship por si só consiga realizar as proezas inimagináveis há alguns anos atrás no setor espacial. Em verdade, o que está por trás dessa nave é o sonho ou promessa, muito bem vendida por Musk, de se ter uma espaçonave capaz de nos levar, inicialmente a Marte, mas que agora, para se provar, validar em voo e se financiar, foi adaptada para atender aos requisitos do Programa Artemis, o que foi feito até então, com muito sucesso, seja no aspecto técnico, de gestão e financeiro (vide a seleção no HLS), mas, também, no marketing que está por trás do projeto.
E vale lembrar que, quando se fala em marketing, o Sr. Musk é uma águia.
Não por menos que a Starship entrou na disputa como franco-atiradora, pois na época somente o estranho protótipo Starhopper havia voado, mas, mesmo assim, com os testes dos primeiros protótipos e dos seus motores, a SpaceX conseguir se classificar em 3o lugar de 11 na primeira eliminatória e, junto com isso, recebeu um financiamento (menor que os das outras concorrentes) que com certeza ajudou a dar um fôlego no desenvolvimento do projeto.
Sem nenhuma coincidência, desde então o ritmo de desenvolvimento e teste dos protótipos da Starship foi aumentando freneticamente, tendo o seu auge no dia em que o SN10 conseguiu completar o voo e demonstrar que é possível realizar o voo de barriga, executar a manobra de transição para ficar na vertical e pousar de pé (ainda que tenha explodido depois).
Alí, naquele momento, imagino que o Starship tenha dado o passo final para ultrapassar os seus concorrentes da disputa do HLS.
Ou seja, o fator interno da SpaceX que influencia todo o seu entorno é a sua capacidade de mobilizar a sociedade em torno de um projeto e de promover as mudanças e melhorias dos seus projetos com uma agilidade espantosa. A combinação perfeita de ideias fora da caixa, de um bom marketing e de uma capacidade e pronta resposta técnica inigualáveis ou pouco vistas em empresas tradicionais.
Agora, com um financiamento da NASA de USD 2.941.394.557,00, a SpaceX, que ainda não tem capital aberto na bolsa de valores, vai ter o fôlego financeiro para desenvolver o Starship Standard e o seu derivado mais simplificado, o Starship Artemis.
Os fatores de comprometimento vinculados a seleção da Starship
Dentre os principais fatores de comprometimento com a seleção da Starship temos: o uso exclusivo para as missões Artemis e a necessidade de uma infraestrutura de suporte / manutenção em órbita.
Como pode ser visto nas imagens dos protótipos da Starship que foram desenvolvidos e testados até então, existem diferenças muito nítidas nos projetos da versão padrão da versão para o HLS, além da pintura das duas versões. Dentre as principais diferenças temos: os flaps na versão stardard que não existem na versão HLS; as “lajotas” hexagonais de material ablativo que existem em um dos lados da versão stardard e não existem na segunda, além das aletas que abrigam os trens de pouso na versão HLS e não tem na versão standard.
Figura 5. Imagem das concepções artísticas da Starship standard (esquerda) e da Starship HLS (direita).
Fonte: Dale Rutherford (@Dtrford) no Twitter
Essas diferenças físicas denotam claramente a diferença de atuação entre as versões que é crucial para o entendimento de cada uma e do comprometimento quanto a decisão da versão HLS. A versão stardard, como já demonstrado nos testes de voo dos protótipos até então, devem ser utilizadas para transporte de cargas e pessoal ao espaço e para (re)entrada na atmosfera usando os flaps para ajudar a controlar a entrada na atmosfera, usando-a como elemento auxiliar de frenagem (frenagem atmosférica). Por esse motivo a versão standard também possui em um dos seus lados todo revestido de lajotas hexagonais de material ablativo para ajudar a dissipar o calor oriundo do atrito com a atmosfera, de modo a não danificar a carenagem da nave que é feita de aço inoxidável.
Portanto, ao não ter nem os flaps nem a proteção do material ablativo, a versão Starship HLS está perfeitamente configurada para operar na órbita e pousar na superfície da Lua, tendo em vista que o nosso satélite não possui atmosfera. Contudo, isso significa dizer que as Starship HLS também não vão poder ser utilizadas para missões em nenhum outro planeta ou satélite natural que tenha atmosfera e não poderá retornar para a Terra, a não ser para serem descomissionadas queimando na nossa atmosfera em direção ao cemitério de satélites no oceano Pacífico.
Essa condição implica que após ser lançada para o espaço, as Starship HLS não poderão retornar a Terra, pousar como as Starship standard e serem reutilizadas nunca mais. Assim, o que não está dito no projeto é se vai ser criada alguma estrutura na órbita da Terra ou da Lua para servir de doca espacial para reparos dessas naves, já que elas não vão poder retornar a Terra.
Além disso, outra dúvida que surge é como as amostras de materiais, equipamentos e pessoas que utilizarem essas naves vão retornar para a Terra. Essas naves retornarão da órbita da Lua para a da Terra e farão baldeação de carga e pessoal para uma Starship standard para assim poderem retornar?
Até onde foi possível pesquisar nenhuma informação explicitando isso foi encontrada.
Sendo assim, considerando a complexidade de operação em uma versão especializada, não seria melhor ter uma versão única, ainda que se perca um pouco de capacidade de carga ou combustível / suprimentos?
Conclusão
A vitória do projeto da Starship / SpaceX no Programa HLS foi um importante ponto para a consolidação da SpaceX como grande provedor de serviços para os EUA e a NASA. Essa vitória vem um momento importante do desenvolvimento da Starship / Super-heavy para a SpaceX e de seu projeto de veículo de transporte espacial 100% reutilizável, bem como para impulsionar os seus projetos de uma nave espacial capaz de levar grande quantidade de carga e de pessoas para a Lua e, principalmente, para Marte, como é o desejo do seu fundador, Elon Musk.
Como o próprio relatório final da NASA afirma, ainda que a proposta de gestão e financeira apresentadas pela SpaceX para o HLS sejam excelentes e justas, os fatores técnicos apresentam soluções que superaram as necessidades apresentadas pela NASA, mas, também apresentam riscos consideráveis no seu desenvolvimento que fizeram com a solução foi classificada como “aceitável”, mesmo com tantos riscos associados a serem gerenciados e mitigados.
Por outro lado, a seleção da proposta da SpaceX consolida a tendência de que as startups e suas propostas inovadoras e disruptivas estão cada dia mais revolucionando o mercado espacial e reafirmando os princípios do New Space.
Como todos que acompanham essas mudanças e a efervescência do setor espacial atual, aguardamos por mais novidades no Programa Artemis e no desenvolvimento da Starship / Super-heavy.
Sobre o TechWarn e o Brazilian Space
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O TechWarn e o Brazilian Space fecharam uma parceria de colaboração para a elaboração de conteúdos exclusivos sobre os temas do setor espacial que serão publicados pelos dois veículos.
* Rui Botelho – É mestre em mecatrônica pela UFBA, especialista em GNSS pela Universidade de Beihang (BUAA) – China e bacharel em Ciência da Computação. Foi servidor concursado da AEB, tendo atuado como Tecnologista Pleno na área de Satélites e Aplicações. É membro-fundador da Aliança das Startups Espaciais Brasileiras (ASB), atua em projetos de TIC como concursado em uma empresa pública da Bahia e leciona em programas de especialização na área de tecnologia, além de Editor do Brazilian Space (Blog) e no YouTube, coautor do Podcast Espacial Brasileiro (PEB), articulista e pesquisador de temas ligados às ciências, políticas e tecnologias espaciais. http://lattes.cnpq.br/6214855666557824